Raramente alguém que diga Indústria Cultural sabe o que está a dizer. A própria expressão cunhada num livro de 1947 por dois autores - Max Horkheimer e Theodor Adorno - sempre criticados por quem jamais os leu de fato, foi apropriada pela indústria que, no mesmo ato de apropriação, aniquilou seu potencial crítico. Ler ou simplismente citar autores críticos já faz, de certo modo, parte da Indústria Cultural, mas entender o que eles possam ter dito, não faz. É assim que, hoje, enquanto o crítico dos produtos culturais usa a expressão com certa vergonha por achá-la inatual, a empresa de entretenimento com franqueza invejável diz agir em nome da Indústria Cultural. A expressão deixou de ser sinônimo de crítica ao lixo cultural (Adorno, por exemplo, dizia que toda a cultura era lixo, reaproveitando Freud). Ninguém mais vê mal algum em que a cultura possa ser associada a algo como lixo e que haja lixo como cultura. Falar do lixo já não assusta. É claro que toda cultura tem relação com o resto da cultura anterior, com o que sobra da pesquisa científica e da produção artística. É certo que toda cultura de massa vive da alimentação que eruditos e populares fornecem às massas, verdade que a construção da ideologia que alimenta as massas vêm de cima pra baixo e, por isso, se falar que cidadãos comuns chafurdam na lama da cultura não é nada demais, muito menos dizer que se lambuzam na cultura de massas. Que o lixo seja cultura é normal e aceitável. Em vez de criarmos temos de reciclar. Toda a cultura torna-se pastiche.
No entanto, o fato de que a expressão Indústria Cultural seja assumida e não indique nada demais é um problema cultural grave. Significa que, no embate da crítica com seu objeto, a própria crítica foi devorada e só temos que nos conformar que ela passou a fazer parte do sistema contra o qual se dirigia. Ou seja, podemos colocar o sentido crítico da indústria cultural no lixo que ela mesma criticava. Porém, analisando um pouco mais, o que foi para o lixo numa manobra que põe em risco o sentido da coisa que se quer designar com a palavra cultura, foi a crítica. Com a crítica vai-se embora o sentido de cultura.
Ficamos só com a indústria que parece dar mais garantias: emoções baratas como produtos made in China com know-how americano num contexto em que as formas de vida, nossos gestos, pensamentos e ações servem à religião do mercado, a sua versão mais espiritualizada, cuja crítica Guy Dèbord, por exemplo, tornou imortal em A Sociedade do Espetáculo. Aquilo que chamávamos Vida é o que fica entre o muro da Indústria Cultural e o espelho sem reflexo do Espetáculo.
Se definirmos cultura como processo e obra humana, o que se revela no lugar existencial do qual não podemos fugir é que a vida inteira foi substituída pela indústria. Ao dizer indústria refiro-me à produção em série com vistas ao lucro e que, para tanto, necessita de escravização em graus variados. A indústria define-se pelo processo de produção que envolve a dominação de uns por outros. Se há produção em série é porque há o objetivo da cópia e da distribuição em série do mesmo produto. Se o objetivo é a reprodução e distribuição, nada mais lógico do que prever quem será o destinatário, seja do produto, seja da mensagem. A este destinatário, o sistema chama consumidor. Para que haja consumidor, ou seja, alguém que corresponda às produções industriais que devem ser tão efêmeras quanto exige o lucro esperado, é preciso que se controle um sentido da espécie humana que desde descoberto - ou inventado - não deixa de ser manipulado por seu potencial mágico: o desejo.
Indústria, não podemos esquecer, é o contrário do artesanato, ou seja da produção em pequena escala, que dificilmente envolve mais-valia. A maior parte dos artistas vive de uma produção fora da indústria, a qual chamamos de processo. O artista atual ou vive mais próximo do que antigamente chamávamos de artesão ou vive dentro da indústria. Não há terceira alternativa. Arte, no entanto, não é palavra que possa ser aplicada ao que se deve chamar Indústria Cultural, sem que se sinta certa vertigem. Aqui temos de tratar de negócios. Precisamos voltar nossos olhos para o business.
O mito como business
Neste ponto já posso incluir o fantástico exemplo de Madonna no contexto da Indústria Cultural e pensar que seu fenômeno significa nestes tempos em que podemos chamar de Espetáculo à religião da Indústria Cultural. Madonna é vista como uma artista, termo que lhe pode ser bem aplicado, caso se entenda arte como sinônimo de mercadoria. Madonna é um claro produto industrial, como os carros fabricados em série na mítica cidade de Detroit, onde ela nasceu e viveu até se tornar aquilo que, sem desmontar o mito, chamam "rainha do pop". Madonna não é arte, contudo, no sentido de produto insubmisso a sua transformação em mercadoria. Ela é pura e simplesmente mercadoria. Ninguém pode lhe objetar a falsidade. Quem pergunta se ela é arte está equivocado ao estatuto da questão.
Madonna não é nada, dirão seus críticos mais ferrenhos, aqueles que percebem sua inexpressividade musical, mas desconsideram a competência espetacular que é o seu foco. Dizer que ela é uma má artista é um exagero que desconsidera que sua questão, a despeito da enganação que a publicidade faz com o povo usando o apelativo da arte, não é a arte, mas o Espetáculo. Quem entender de mercadoria não poderá se revoltar contra Madonna. Como mercadoria ela nem pode ser cobrada de qualquer ética para além do que ela está a vender.
Madonna é um produto muito competente na Indústria Cultural que culmina na Sociedade do Espetáculo. Ela é uma empresa que usa a cena da arte. É um negócio como qualquer negócio. Emblema da competência, ela é a alegoria perfeita da Indústria Cultural e a melhor expressão da falta de expressão do Espetáculo. Vazio estético apresentado com pompa de efeitos especiais e corpo de plástico, pura esteticidade que impera com sua marca autoritária de coisa a ser seguida por horda de imitadores e consumidores, aparência de beleza eterna, que sobrevive ao tempo, estereótipo e simulacro.
Madonna ou Vênus
Assim como no Renascimento italiano a Vênus surgindo das águas na pintura de Boticelli representou a verdade, Madonna é a nova verdade na passagem dos séculos. É a Indústria Cultural emergindo no Espetáculo. O mito do nascimento da Vênus mostrava que a verdade deveria estar nua e livre das roupas da cultura. Madonna surge de dentro de carros,holofotes, lasers, luzes e toda a parafernália que adorna o kitsch pomposo do pop com seus trejeitos herdeiros das óperas, feito de rituais de efeito sadomasoquista e lúdico-tecnológico.
Cinismo a tudo perdoa
Aqueles, feministas ou não, que viram em Madonna a emblemática da mulher poderosa, porque desbocada, sexualmente livre,determinada, competitiva, e apesar de toda a sorte de liberdade, capaz de ser uma boa e caretíssima mãe, não percebem que ela mesma é uma montagem que deriva da cultura patriarcal que continua dizendo o que devem ser as mulheres. Não mais do que coisa para olhos alheios. Sem moralismo quem poderá objetar que há algum mal nisso tudo? Temos apenas que nos cuidar para que a ausência de moralismo não nos jogue de cara no chão do cinismo que a tudo perdoa. Enfim, quando se usa qualquer droga, o efeito é sempre o mesmo
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