domingo, 28 de março de 2010

LIXO


Uma aula de narração em discurso direto é o que reflete o texto "Lixo" de Luis Fernando Veríssimo, extraído do livro Manual de Leitura e Produção Textual de Amanda Duarte Blanco e Rafael de Caneda Lopez (editora Armazém Digital pelo Núcleo de Ensino de Língua em Extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Para quem gosta do tema, aí vai:


Encontram-se na área de serviço. Cada um com o seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam.

- Bom dia.

- Bom dia.

- A senhora é do 610.

- E o senhor do 612.

- Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...

- Pois é, desculpe minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...

- O meu quê?

- O seu lixo.

- Ah...

- Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena.

- Na verdade sou só eu.

- Humm. Notei também que o senhor usa muita comida em lata

- É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...

- Entendo.

- A senhora também.

- Me chama de você.

- Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim.

- É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas como moro sózinha, às vezes sobra.

- A senhora... Você não tem família?

- Tenho, mas não aqui.

- No Espírito Santo.

- Como é que você sabe?

- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.

- É. Mamãe escreve todas as semanas.

- Ela é professora?

- Isso é incrível! Como você adivinhou?

- Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.

- O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.

- Pois é...

- No outro dia, tinha um envelope de telegrama amassado.

- É.

- Más notícias?

- Meu pai. Morreu.

- Sinto muito.

- Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.

- Foi por isso que você recomeçou a fumar?

- Como é que você sabe?

- De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas em seu lixo.

- É verdade. Mas consegui parar outra vez.

- Eu, graças a Deus, nunca fumei.

- Eu sei, mas tenho visto uns vidrinhos de comprimidos no seu lixo...

- Tranquilizantes. Foi uma fase. Já passou.

- Você brigou com o namorado, certo?

- Isso você também descobriu no lixo?

- Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho jogado fora. Depois, muito lenço de papel.

- É, chorei bastante, mas já passou.

- Mas hoje ainda tem uns lencinhos.

- É que estou com um pouco de coriza.

- Ah.

- Vejo muitas revistas de palavras cruzadas no seu lixo.

- É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.

- Namorada?

- Não.

- Mas há uns dias tinha uma fogografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.

- Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.

- Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.

- Você está analisando o meu lixo!

- Não posso negar que o seu lixo me interessou.

- Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia.

- Não! Você viu meus poemas?

- Vi e gostei muito.

- Mas são muito ruins!

- Se você achasse eles ruins mesmo teria rasgado. Eles só estavam dobrados.

- Se eu soubesse que você ia ler...

- Só não fiquei com ele porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?

- Acho que não. Lixo é domínio público.

- Você tem razão. Através dos lixos, o particular se torna público. O que sobra de nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. será isso?

- Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...

- Ontem, no seu lixo.

- O quê?

- Me enganei, ou eram cascas de camarão?

- Acertou. Comprei uns camarões grandes e descasquei.

- Eu adoro camarão.

- Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode... Jantar juntos?

- É. Não quero dar trabalho.

- Trabalho nenhum.

- Vai sujar a sua cozinha.

- Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.

- No seu lixo ou no meu...

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