domingo, 24 de janeiro de 2010

Pocilgas do Brasil


O francês Michel Foucault faz "Em Vigiar e Punir" - obra que o transformou em referência mundial - um contundente relato de atrocidades cometidas em nome da lei. O compêndio que retrata em minúcias como o castigo físico foi a regra - e continua sendo - no trato a presidiários, se embasa em pesquisas feitas nos cárceres franceses e ingleses. O filósofo Foucault talvez se horrorizasse e nos chocasse ainda mais se tivesse a oportunidade de pesquisar sobre os presídios brasileiros. Ao festival de torturas e degradações impostas aos detentos, comuns na Europa, as masmorras brasileiras acrescentam historicamente uma perfídia a mais: o racismo. As prisões, aqui, nasceram e vicejaram para castigar os negros escravos - praticamente só a eles. E negra continua a ser a maioria dos seus ocupantes, embora não mais formalmente escrava.
Quem quiser saber mais sobre um sistema prisional que deixaria o próprio Foucault de cabelos em pé (se o francês os tivesse...) deve ler Histórias das Prisões no Brasil, volumes II e III, lançados em agosto de 2009. Em 630 páginas bem distribuídas, 20 autores mergulham na torpe realidade das cadeias brasileiras. São três séculos vistos e revistos à luz de documentos e depoimentos chocantes.
Tome-se como exemplo o Aljube. Antigo lugar para castigo de religiosos pecadores no Rio de Janeiro, o cárcere eclesiástico foi cedido pela Igreja à coroa portuguesa em 1808 e usado para guardar presos provisórios (os que eram detidos em flagrante delito e aguardavam julgamento). Ali ficavam por dias, anos, às vezes décadas. Do ladrão de frutas ao estuprador em série, todos misturados como descreve o chefe da Polícia do Rio, Eusébio de Queiroz Mattoso Câmara, em inspeção realizada em abril de 1833. -Mal arejada, contém perto de 400 pessoas amontoadas, que conservam sobre o corpo pouca roupa, e essa sumamente suja. O pavimento, pela muita lama que é coberto, mais parece habitação de animais imundos do que homens. Os canos para esgoto das águas, por mal construídos, conservam-nas longo tempo empoçadas, o que produz exalações insuportáveis... Uma onça de carne, um vigésimo de farinha e uns poucos grãos de feijão são o único alimento que, de 24 em 24 horas, recebem aqueles miseráveis -, relata Câmara.
Se a situação chocou o homem encarregado de vigiar e punir, não é difícil imaginar quão difícil era ser presidiário naqueles tempos. Ao longo dos dois volumes, organizados por pesquisadores das universidades federais de Pernambuco e do Rio de Janeiro, o leitor fica sabendo que marinheiros rebeldes tinham para si um lugar reservado: o navio-prisão português conhecido como Presiganga Real. Descobre ainda que, apenas no Rio, entre 1810 e 1821 nada menos que 3.147 pessoas foram açoitadas dentro do calabouço (a prisão para escravos), porque ousaram fugir ou se rebelar contra a escravidão.
Certamente que os presídios, hoje, continuam sendo pocilgas, mas alguns avanços aconteceram - como a mudança do regime, possibilitando que gradualmente o detento apenas pouse na prisão e trabalhe durante o dia (teoricamente, na prática são excessões). Ou a permissão para as visitas íntimas, que até o século 20 simplesmente não existiam. Isso fazia da curra um crime cotidiano dentro das prisões. De qualquer forma continuam pocilgas com curras, sim!

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