domingo, 4 de julho de 2010

BILL GATES TENTOU COLOCAR O ROMANCE NA GUILHOTINA CIBERNÉTICA







"A Cultura do Romance", obra literária organizada pelo professor italiano Franco Moretti e lançada no início do ano com ensaios traduzidos por Denise Bottman, Cosac, Naify, comporta 1.112 páginas e pode ser adquirido por R$ 150. Seu organizador é crítico literário e já havia publicado no Brasil o livro "A Literatura Vista de Longe" pela Arquipélago. A obra "A Cultura do Romance" contou com o trabalho de uma legião de 178 colaboradores de 99 instituições do planeta, inclusive, dos brasileiros Roberto Schwartz, Luiz Costa Lima e José Luis Passos. Moretti propõe o despertar das reações e emoções acerca da história da antropologia do romance, quando se pensa no nascimento, na vida e no destino do livro, á beira do futuro de um mundo resumido a uma tela de computador e a textos de fácil leitura, que não provocam nada além da mera fruição que o ato de ler ocasiona e se reduz a obras, que viram filmes e são lançados em larga escala para engordar os prelos da superficialidade, que movem contas e corações nos quatro cantos do planeta, analisa o ensaísta Carlos Tavares.



O projeto literário de Moretti retratado em "A Cultura do Romance" se afirma como inventário metafísico do engenho humano da ficção e da verdade que nasce como espelho do homem moderno, a partir de Dom Quixote, forjado na palavra e na imaginação. "O romance não é só mimese do mundo moderno, mas também se pôs como seu instrumento cognitivo privilegiado", opina o crítico e romancista italiano Claudio Magris no texto que fecha o primeiro volume, com o sugestivo título O Romance é Concebível sem o Mundo Moderno? (pg. 1.026). Diante da necessidade ancestral do homem, de invenção de mundos e vidas, a literatura seria mais uma espécie de inventário de dores e alegrias sem a qual seria impossível, pensar-se na filosofia, na psicanálise, na sociologia, na antropologia porque ele, o romance, antecipa-se a todas essas especialidades.



Mas, esse extraordinário trabalho coletivo do italiano Moretti é a mais completa e indiscutível resposta à linha dura do arquibilionário Bill Gates. Carlos Tavares, crítico literário, raciocina que ao decretar a morte do romance na forma de livro na Academia Real Espanhola, Bill Gates definia a dimensão do distanciamento do homem moderno, globalizado, para com os gêneros literários e o valor da leitura de bons livros ainda cultivados no mundo. As palavras de Gates provocaram desconforto e revolta naqueles que têm e que buscam outra compreensão do processo de criar, de ser e de ler, para assegurar no tempo o espaço do livro e para que outras gerações tenham acesso e zelo, por obras que vão além do mero entretenimento. Para estes, com toda certeza, o romance é construção de um mundo à margem e paralelo ao nosso, mas sem limites; um mundo ficcional que acaba por evidenciar uma realidade além da realidade. Para estes, a narrativa da ficção é também algo além da fantasia e da aventura humana de tentar ultrapassar as perspectivas desta realidade para escapar de suas garras de tédio, com a imaginação.



Quando Bill Gates pronunciou a sentença de morte sobre a possível morte do romance, após selar um acordo com a Academia para introduzir um sistema eletrônico dos mais modernos e poderosos de acesso ao livro e à pesquisa por meio da rede de computadores, acrescentou que a ideia de condenar o romance às guilhotinas cibernéticas teria o nobre propósito de salvar as árvores e despoluir o mundo. "Não há nada que não possa ser lido na telinha", definiu o homem que revolucionou a história recente da informática, com um sorriso de gênio nos lábios.



Isso foi o bastante para despertar a indignação do escritor peruano Mario Vargas Llosa, entre outros intelectuais apaixonados pelo livro. No ensaio de abertura de A Cultura do Romance, que traz o sugestivo título É Possível Pensar o Mundo Moderno sem Romance?, Llosa vinculou as palavras de Gates ao universo cibernético frio e totalizante representado pelo magnata norte-americano, e à época da banalização dos verdadeiros valores culturais, ao tempo de desprezo pelo legado de Cervantes, Shakspeare, Homero, Dante, e tantos outros gênios da palavra.



Em resposta ao veredicto do dono da Microsoft, o autor de A Verdade da Mentiras (Ed. Arx) diz, no ensaio, estar convencido de que, ao adotar-se o auto da fé da mídia digital proposto por Gates, a literatura que nos ajuda a aceitar melhor a vida, sofreria um duro golpe, se viesse a ser enclausurada exclusivamente na telinha; e afirmou que jamais poderia lhe ocorrer que viesse a ler Góngora, Sófocles, Shakspeare ou Octavio Paz sem que fosse folheando um livro. Para Vargas Llosa essa forma de leitura proposta por Bill Gates serve apenas para textos tão distantes "daqueles que hoje entendemos por literatura, quanto os programas televisivos de fofocas...".



Llosa faz questão de acrescentar que a literatura nos permite viver num mundo, cujas leis transgridem as leis inflexíveis em meio às quais transcorre a nossa vida real, emancipados da prisão do espaço e do tempo, na impunidade para o excesso e donos de uma soberania que não conhece limites. Sorte de Bill Gates que Mario Vargas Llosa não estava entre os que o escutaram reproduzir um velho bordão herdado de príncipes, cardeais, imperadores e reis bibliocastas da antiguidade e de tempos mais recentes que constumavam mandar para a fogueira parte da sabedoria escrita em livros, objetos considerados instrumentos do demônio, nocivos à saúde mental das pessoas, principalmente mulheres, ingênuos, semianalfabetos e fracos.



Mas, há de se admitir - ou sentir - essa impressão, após a leitura de tantos textos recentes e do passado sobre a morte do romance e o desprezo com que é tratado pela sociedade, desde a sua existência, que se amplia cada vez mais, no mundo moderno, a solidão de Wertner, de madame Bovary, de Robinson Crusoé, Macunaíma, Ulisses, Lady Chaterley, Riobaldo, Anton Reiser, Dom Alonso Quijano, Lord Jim, Kurtz, entre outros personagens da literatura universal que vagueiam pelas mais de mil páginas deste tomo. "A literatura corre o risco de perder não apenas sua própria eficácia, mas até a própria identidade, diante das fantasias reificadas da mercadoria e, principalmente, da mercadoria imaterial", adverte Franco Moretti, na apresentação do aparato crítico de seu livro, que mostra o romance de algemas (pg. 197): Werther, de Goethe, Madame Bovary, de Flaubert, Ulisses, de Joyce, Versos Satânicos, de Samuel Rushdie, entre outros títulos ameaçados pelos juízes da moral e da religião. Conclusão: apesar das quedas do romance, que a todo Moretti renasce, desperta com força, acima da globalização massificante de Bill Gates, levantam-se milhões de novos leitores, que dispensam a mediocridade das prisões cibernéticas, das telinhas muito úteis para a informação rápida, mas jamais perfeitas o suficiente par substituir os gênios de toda forma de expressão. Eles estão acima das mãos de qualquer um. Assim, como ensina O Nome da Rosa, de Umberto Eco, as bibliotecas com livros em que podemos folhear, contém um romance de segredos em muitos romances permeados por suspense, mistérios, onde tocar no papel é tocar no escritor.

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